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sábado, 3 de junho de 2023

RETRATO DE UM MENDIGO REVOLTADO (conto)

 RETRATO DE UM MENDIGO REVOLTADO

O terceiro emprego foi um cargo de topo numa grande empresa na grande cidade. Extraordinário para um provinciano de origens humildes. Mas, depois, mais depressa do que subiu, desceu. Depois apostou, forte, no jogo, crendo saltar, muito alto, num passo mágico. Começou a ganhar e depois, rápido, perdeu tudo. O zero. Mexeu-se em vão. Os que antes o rodeavam eram-lhe agora contrários e estranhos. Mexeu-se mais e mais. Mas quanto mais se mexia mais se afundava na teia fortalecida pelo mexer do mexelhão. Caiu, revoltado, na rua. Mas não era propriamente a mendicidade que o revoltava.

Na adolescência, quando os amigos liam as aventuras dos cinco e dos sete e as metafísicas terrenas extremas do Lobsang Rampa, ele já lia Dostoiévski, Caldwell e Maupassant. E inspiravam-no, sobretudo, histórias pitorescas, como a do mendigo que dormia em cabanas campestres abandonadas para ir de terra em terra bater de porta em porta e bastar-se com o pouco que lhe davam. Impressionava-o, positivamente, a despreocupação dos que não tinham nada contra as preocupações dos que tinham muito. E o que o revoltava agora era viver centrado na sopa dos pobres sem o romantismo literário.

Uma manhã, alongada no marasmo do dia-a-dia de pedinte sem pedir, sem os roteiros dos riachos e das fontes, sem as sombras dos bosques e os seus frutos, o abrunho, a amora brava e o medronho, sem os perfumes das terras lavradas e do alecrim, da esteva e do rosmaninho, sem as camas de palha, sem os trinados dos rouxinóis, os cantos das toutinegras e os pios dos mochos, e sem o coaxar das rãs, afastou os cartões, desenrolou-se das mantas e ergueu-se contrariado do banco de jardim. No banco da frente estava uma rapariga que rabiscou, ligeira, numa folha. Mas logo ela se ergueu e partiu. No fechar do bloco viu que o tinha retratado. Um retrato agressivo, tosco e nada romântico. Muito mais um anti-retrato que um retrato. Ficou pasmado olhando a jovem, talvez estudante do secundário e aspirante à Escola de Belas Artes, afastando-se, diluindo-se e anulando-se na urbe moderna e harmoniosa. E ficou ainda mais revoltado.

Montalvo, 21 de Janeiro de 2019.

Inspirado na pintura, com o mesmo título, de Eusébio Almeida.